"Tu és o capitão, Coluna!"

 

Em menos de dois meses, a família benfiquista viu partir duas das figuras mais importantes da história e da mística iniciada por Cosme Damião há 110 anos, idade alcançada esta semana (dia 28 do mês dois). Depois de nos primeiros dias do ano, o Rei ter subido ao 4º anel, o final de Fevereiro sentenciou que o Capitão, o Monstro Sagrado Mário Coluna devia juntar-se ao seu "afilhado", onde agora olham pelo nosso Benfica, universo a que dedicaram a vida e a quem tanto, tanto devemos. Tive oportunidade de o dizer por altura do falecimento de Eusébio, e o mesmo serve em relação ao Sr. Capitão: o Benfica é o que é hoje, por responsabilidade de pessoas como eles, que engrandeceram o nome do clube e honraram o símbolo sagrado que, ao peito, sempre carregaram com valentia e orgulho. E assim asseguraram dois lugares na eternidade.


Hoje, no Restelo, disputámos o primeiro jogo do campeonato após o desaparecimento de Coluna (entretanto já batemos o PAOK de Salónica para a Liga Europa). Com a vista para o Rio Tejo importunada pelo nevoeiro, um mar vermelho ali desaguou, numa tarde de frio e chuva, mas acima de tudo, numa tarde de Benfica, com todos os comportamentos irracionais e apaixonados que daí advém. Na bancada cantou-se pelo Rei e pelo Capitão. No relvado, quem decidiu foi um génio. Do alto do 4º anel eles tiraram o chapéu a Nico "Picasso" Gaitán, e aplaudiram mais uma vitória, rumo ao 33º título de Campeão Nacional. Por nós, por eles e pelo vosso amor próprio depois do que aconteceu no final da época passada, não falhem. Não falhem de novo. Sejam Benfica. Tanto quanto nós somos todos os dias da nossa vida. Tanto quanto eles foram e serão sempre.

Coluna, também ele, será sempre Sport Lisboa e Benfica. 
Obrigado, Monstro Sagrado.

IV. "Tu és o nosso Rei, Eusébio"


Hoje, 20 de Janeiro de 2014, percebi o porquê de todos, até à data, terem poucas palavras para descrever o Museu Cosme Damião e o que ele suscita. É que se depois da minha visita de quase três horas me pedissem um comentário, eu não saberia o que dizer. Ou talvez soubesse, mas seria poupado nas palavras porque a injeção de história quer de Portugal, quer de Lisboa, e acima de tudo a história do Sport Lisboa e Benfica que ali recebemos, é tão grandiosa que as palavras se afogam, ainda que esperneando, em mares incontroláveis de emoções espontâneas. Sim, hoje emocionei-me no Museu Cosme Damião. No fundo, perguntei-me porque é que me lembro de mim já a amar o vermelho e branco? Não sei ao certo de quando me lembro de mim mesmo pela primeira vez, provavelmente tinha uns cinco anos, mas já era louco desta cabeça. Hoje, mais do que nunca, talvez tenha encontrado a resposta correcta à minha dúvida: "ser Benfiquista é a coisa mais natural do mundo".


Há muito que se exigia uma visita a este espaço, concretamente desde o dia 29 de Julho de 2013, dia em que as portas se abriram ao público. Por isto ou aquilo, apenas hoje visitei o edifício na imponência dos seus três pisos. Três pisos que vão para lá do clube, para lá da cidade, para lá do país. O mundo e o que lhe aconteceu até ser aquilo que é hoje, é lembrado em muitos dos seus momentos mais marcantes. E o Sport Lisboa e Benfica é, claro, um dos grandes acontecimentos da vida do mundo. Hoje emocionei-me. Emocionei-me quando, já depois de ter visto milhares de troféus de 1001 modalidades, de ter lido "n" curiosidades que desconhecia, de ter visto a camisola rasgada que o Fehér vestia quando cedeu em pleno relvado de Guimarães, cheguei à área temática (num total de vinte e nove) sobre Eusébio da Silva Ferreira. Um holograma do "Rei" a falar sobre si, sobre o seu benfiquismo, com imagens e testemunhos de outras glórias nacionais e internacionais, apertou comigo e engoli em seco. E não aconteceu só comigo. É demasiado real. Uma obra e ideia fascinantes. 


O Museu Cosme Damião olhando para o futuro, retrata e recorda, como museu que é, o passado mais ou menos longínquo. E falar em passado do Sport Lisboa e Benfica é falar de Eusébio. O Pantera Negra não jogava sozinho, ninguém joga, mas ainda que precisem que o resto da orquestra funcione, a verdade é que é aquela "meia-dúzia" que marca a história e catapulta os respectivos clubes para outra dimensão. E se o Benfica é, hoje, um dos grandes clubes da história do desporto, muito deve ao miúdo tímido e humilde que em 1960 chegou a Lisboa, vindo de Moçambique, e vestiu anos a fio de águia ao peito, tratando por "senhor" todos os que eram mais velhos e pedindo permissão para marcar um simples livre, como aconteceu na final de 1962, quando nos sagrámos bi-campeões europeus. Naturalmente, deu golo. Eu nunca vi Eusébio jogar. Mas se eu cresci a ser deste clube, a vive-lo intensamente, a gritar golo a plenos pulmões e a dar pontapés em tudo em cada derrota, devo-o a quem fez do Benfica aquilo que é. Devo-o, entre muitos outros, a ele. 


Mas ninguém é eterno. Pelo menos em vida. O dia 5 de Janeiro de 2014, acordou com a notícia da morte do nosso ídolo, da maior figura da nossa história, a poucos dias de completar 72 anos. A sua saúde há muito que preocupava, inclusivamente o holograma mostra uma pessoa que já se cansava enquanto falava. A onda de solidariedade e tristeza alastrou-se rapidamente e a estátua do Rei nas imediações do Estádio da Luz, já não aquele onde Eusébio tanto brilhou, encheu-se de acessórios de centenas e centenas de pessoas que lá foram deixar uma recordação. Miúdos choravam. Miúdos que, tal como eu, nunca o viram dar um chuto numa bola ao vivo (sem ser na Eusébio Cup), mas que sabiam e sentiam perfeitamente aquilo que estava a acontecer. Estavam a ver partir um ídolo do clube que gostam, que os faz sorrir e bater mal da cabeça todos os dias. Um ídolo que fez coisas brilhantes de camisola encarnada e calções brancos, que lutou, que deixou a pele em campo para elevar o nome do Benfica mais alto. A emoção chegou verdadeiramente à Luz quando o corpo chegou também. Até ao dia seguinte, altura em que o seu desejo de dar uma ultima volta ao relvado foi cumprido, milhares de pessoas deslocaram-se à porta 1 para olhar uma última vez o seu rosto. Mas o momento mais emocionante das cerimónias foi mesmo a volta ao estádio, perante largos milhares de Benfiquistas a endereçarem um último adeus. O hino do Benfica soou e os cachecóis ergueram-se debaixo de chuva, com a urna no centro do relvado. Também uma das canções preferidas do King, "Con Te Partiro" de Andrea Bocelli, se fez ouvir elevando dramaticamente os níveis de ansiedade e a falta de controlo emocional. Foi inevitável. Foi o momento mais complicado de digerir. "Tu és o nosso rei, Eusébio. Descansa eternamente" ouvia-se em permanência em cada uma das vozes.


Chuva. Muita chuva a partir daqui. Em dia de reis, o cemitério do Lumiar foi pequeno para tantos que queriam despedir-se uma última vez do nosso. Até o céu ajudou a criar maior carga dramática ao funeral. A família, Jorge Jesus, Rui Costa, Cardozo, Luisão e largas centenas de anónimos, ou figuras conhecidas de outros quadrantes, tinham litros e litros de água a pesar nas roupas. Muita confusão, talvez em demasia para a família que preferia cerimónias mais calmas, em maior silêncio, mas para Eusébio tinha de ser assim e ele, certamente, gostou de ver e sentir o nosso "obrigado" onde quer que esteja. Dias mais tarde, cumpriu-se um minuto em absoluto silêncio antes do jogo frente ao porto. E com o seu nome escrito em todas as camisolas, vencemos 2-0. Ele ficaria feliz, como qualquer um de nós ficou. Ele era um dos nossos, e no fundo continuará a ser. Simplesmente não o vemos. 


Obrigado por tudo. Tu foste, és e serás Benfica e dignificaste um clube que, um dia, Cosme Damião criou para ganhar, para ser o maior, para dar alegrias a milhões de pessoas. Aos de hoje, só pedimos o mesmo. Como diz o primeiro hino do clube, "E vós oh rapazes com fogo sagrado, honrai agora os Ases que nos honraram o passado". Ases como Eusébio ou Cosme Damião. Até sempre, campeões!

 


III. "Give me wings to fly, ride the sky", Helloween



Completar-se-ão, no início do ano que chega dentro de dias, seis invernos desde que me meti, pela primeira vez, numa aventura internacional com a chancela do Heavy Metal bem cravada. Por isso mesmo, a tour que uniu gigantes do power metal alemão, como são Helloween e Gamma Ray, carimba uma página de extraordinária relevância na minha vida que, naturalmente, guardo com particular nostalgia, estima, mas essencialmente um tremendo orgulho. Corria o mês de Dezembro de 2007 quando dei conta que, daí a pouco, os dois monstros já citados iriam tocar em Madrid, numa data na qual já alguns amigos haviam confirmado presença. Não hesitei em trocar impressões com eles e informar-me sobre as viagens e bilhete para o evento e, daí até ter as passagens da Vueling e a reserva da entrada no La Riviera, foi um passo dado a alta velocidade pois o tempo afunilava-se. Só depois de pagar tudo o que tinha a pagar, é que perguntei cá em casa se podia ir a um concerto em Madrid, embora já tivesse tratado de tudo para abreviar caminho. Jamais imaginaria perder duas das minhas bandas de eleição, na altura, após meter na cabeça que ia, mesmo com a infecção respiratória que me atormentava e que, de modo algum, aconselhava a estas coisas. Era a primeira vez que me metia numa destas. Madrid abriria um precedente. Tratava-se de elevar o nível, alcançar um novo patamar na relação com a música. Ir a concertos no estrangeiro, ou pelo menos fora da grande Lisboa, seria uma droga da qual não mais me livraria. Hoje, o local é um pormenor. Não é por ser distante que deixo de ir, no máximo será pela falta de interesse. É por isto que a importância do dia 19 de Janeiro de 2008, está bem evidente naquilo em que me transformei seis anos depois.


Manhã de Sábado, aeroporto de Lisboa. Logo à entrada, lá estavam os restantes membros da comitiva. Honestamente, a esta distância temporal, não me recordo de quantos éramos exactmente. Três com certeza, provavelmente mais um. O Zé, mais conhecido por Rockhard, e o Ricardo, no meio metálico alcunhado por Rickmaiden. Deles lembro-me, até porque foram duas pessoas que me alargaram os horizontes naquela altura. Pessoas que, entre outras, me influenciaram e ajudaram trazer à minha vida o Heavy Metal de pendor mais tradicional, quando a matança do porco vivia no centro das minhas atenções. É verdade, mesmo Iron Maiden me passava um pouco ao lado, o meu chip estava programado com outras definições. Pouco tempo antes, e pouco depois de os ter conhecido no primeiro almoço da Irmandade Metálica, convenceram-me a ir a Kreator no Coliseu do Porto. Desafio aceite e mais um mítico nome acrescentado à caderneta, à data ainda muito despida. Dessa noite recordo como dávamos ao pescoço ao som da máquina germânica, enquanto os fãs de Moonspell (em maioria na sala) estranhavam haver cabeças a rolar em vez de andarmos a morder pescoços. Enfim, outras contas. Voltando ao aeroporto Sá Carneiro, de onde ainda não saí e o texto já vai longo, um ligeiro pequeno almoço e estava, rapidamente, dentro do avião da companhia espanhola. Eu e a minha t-shirt de Akercocke, que se referia a Satanás e coisas. Uma vez chegado a Madrid, ou por outra, ao aeroporto nos arredores da cidade, o metro era a forma de chegarmos ao centro. Aí, o almoço foi o mais simples e reles possível, num McDonalds. Em frente, a avenida era longa. E no fim, o La Riviera recebia já uma fila extensa a algumas horas do evento. Nessa medida, nada como ir passar o tempo a um bar, apesar da péssima cerveja a que se está sujeito em Espanha. Rodada daqui, rodada dali, até voltarmos para a fila onde encontrámos os Mindfeeder e mais alguns camaradas que seguiram por estrada, desde Lisboa, e ficariam para pernoitar. Aproveitámos o encontro para ficar mesmo ali e não no final da fila. Primeira impressão: uma palmeira gigante mesmo no meio da plateia? Wow! Compro o meu hoodie de Gamma Ray, estupidamente largo ao ponto de nunca o ter vestido (e bem caro), e aproximo-me do palco porque os Axxis aprontavam-se para dar início à faísca. Não os conhecia, mas agradaram-me. Não especialmente pelo concerto em si, mas pelo som praticado. Belos refrões, aquelas melodias tão power metal que ficam no ouvido. Soube, então, que eram também uma banda com carreira no género, ainda que numa divisão abaixo das parceiras de cartaz. Mas o que me interessava mais eram os senhores que se seguiam. Os Gamma Ray e a voz do Kai Hansen eram o motivo principal para esta súbita vontade de embarcar na aventura madridista. Dias antes, o mestre Kai tinha-se limitado à guitarra por não estar bem da voz, sendo substituído nesse campo pelo vocalista de Metalium. Felizmente, foi nesta data que ele voltou a pegar no leme. O que poderei dizer do concerto? Não muito. Foi absolutamente fantástico e dos três ou quatro que vi no total, sem dúvida alguma o melhor. Enquanto virava uma "saborosa" litrosa San Miguel, que custou dez euros ao Zé, admito que me emocionei, não me consigo lembrar o tema que me levou a esse estado, mas sei que sim. Talvez a "Real World", um dos temas que eu mais pedia ao menino Jesus para tocarem, do "Land of the Free II". Aquele refrão composto por azeite de altíssima qualidade!! Houve ainda oportunidade de ouvir a inacreditavelmente boa "Ride the Sky", dos tempos em que Kai Hansen liderava a banda que se seguia. Dos tempos em que eram realmente bons. Depois de uma espera relativamente longa, os Helloween tomaram conta das atenções. Não gosto do Andi Deris, ao vivo é um pesadelo ouvir temas como "Eagle Fly Free" na sua voz, assassinando completamente o que é maravilhoso na voz do Michael Kiske, mas tirando isso foi um concerto com o nível mínimo exigido. Vários momentos para encher chouriços, alargaram um pouco mais uma actuação que saía beneficiada se fosse apenas musical, sem teatros com duendes. Sabendo que, no final, os Gamma Ray voltariam ao palco para interpretarem juntamente com Helloween "I Want Out" e "Future World", o público chegou-se à frente e gritou pela actual banda de Kai Hansen, numa espécie de espanglês. Talvez estranho para a banda que estava a actuar, mas um sinal claro sobre quem foram os reis da noite. 


 Com o Heavy Metal a correr pelas veias, lá fora estava frio. Muito frio. E se à hora de almoço o metro nos tinha ligado entre o aeroporto e o centro da capital espanhola, à noite e sem meio de transporte só uma solução restava. Caminhar. Atravessar vias rápidas, subir e descer rebanceiras, com a Guardia Civil a passar por nós desconfiada, enfim, seguir caminho tentando acreditar que o aeroporto seria naquela direcção. Cansados, gelados e eu a deitar os pulmões pela boca, chegámos ao local e no chão eles fecharam os olhos quatro ou cinco horas. Não sem antes haver uma discussão épica sobre qual a melhor banda. Foi então que surgiu a tirada mais memorável de todo o dia, quando o Zé afirmou que "uma andorinha não faz a primavera", referindo-se a Kai Hansen, defendendo de forma acérrima Helloween. Mais ninguém concordava e a discussão prolongou-se na manhã seguinte em pleno avião. Eu não consegui dormir, cheguei a pensar que já não voltaria a Lisboa com vida, passe o exagero, tais as dificuldades respiratórias com que estava a lutar. Mas cheguei. Cheguei, tratei-me e consegui tudo. Continuar a viver e seis anos depois contar esta história que muitas marcas deixou. Obrigado Metal, obrigado espírito único!

II. "Generals gathered in their masses", Black Sabbath


O Heavy Metal, o Benfica, a viagem de finalistas ou o simples gosto pelo turismo, já me levaram a vários lugares distantes; musicalmente, que é o que interessa aqui, vi Gamma Ray e Helloween em Madrid, fui duas vezes a Wacken (2009 e 2010), outras duas ao Hellfest (2012 e 2013), festivais que me ofereceram nomes também eles lendários e que não mais voltarei a ver. Mas, apesar das 1001 bandas já vistas nos quatro cantos de Portugal, em Espanha, França, Alemanha, etc, ver Black Sabbath é entrar numa dimensão diferente, é adicionar um cromo sem preço à caderneta que qualquer amante do som sagrado guarda com todo o cuidado. Os monstros Ozzy, Iommi e companhia já não vão para novos, nem a sua saúde é de confiar, e as oportunidades para os vermos são autênticas coca-colas no deserto, como tal, após vários amigos terem falado no tema, decidi tratar de tudo sem pensar muito no que restava da vida.


Dia 1 de Dezembro de 2013, pela manhã, arranquei rumo a Paris com o Pedro. Noutros voos, tinham seguido mais cedo o Daniel e o Marc. O Filipe, a viver nos arredores da capital, esperava por nós e oferecia uma cama e chão em sua casa, poupando-nos alguns trocos. Após o primeiro contacto com a realidade parisiense, com visitas a Notre Dame e ao Louvre, à noite tratámos de nos embebedar com Jagerbombs, dar uns toques no snooker e pagar uma conta de 300 euros. E ainda conhecemos um norueguês que afirmava não gostar de nórdicas. Mas não interessava, estávamos ali para curtir como se não houvesse dia seguinte. Bem, convinha haver dia seguinte...pois era por aquela Segunda-feira que tínhamos viajado. O Filipe, o Marc e o Daniel foram para as filas, em Bercy, ao meio dia, enquanto que eu e o Pedro aproveitámos para dar uma volta pela cidade e pôr a máquina fotográfica a funcionar, quais turistas chineses (sem as "selfies"). A parte em que temos 200 fotos iguais da Torre Eiffel, o Sena, a Avenida dos Inválidos, a procura condenada ao insucesso por um restaurante, os Campos Elísios, o Arco do Triunfo, tantos pormenores e curiosidades. Paris é uma cidade encantadora, com gente bela, com uma mãe e uma filha especiais, e um fresco que se entranhava nos ossos e nos fazia gritar "c*ralho, isto é que é metal!", excepto na pausa para o chocolate quente. 
 

Mas era para vermos história que ali estávamos. A enorme rede de Metro levou-nos a Bercy e dirigimo-nos para a extensa e assustadora fila que nos transportaria até à porta 27. Felizmente, era mais fogo de vista e rapidamente entrámos no pavilhão, com o palco logo ali diante de nós, onde dentro em pouco estariam os Black Sabbath a tocarem duas horas de hinos, perante um público francês que foge ao fraco. Gostam é de saltar e andar agarradinhos como Marias Amélias. Cantar e abanar a cabeça é o menos possível - "ai a minha garganta, ai o meu pescoço, vou-me agarrar ao François que isso é que é metal!". Bom, os Uncle Acid and the Deadbeats abriram a noite. Já os tinha visto e fiquei com a mesma ideia, o som deles ouve-se bem até metade do concerto. Depois já só queremos que venha o próximo. E eis que a cortina se levanta com início de "War Pigs", levando a uma loucura controlada de um pavilhão que parecia estar a assistir a uma peça de teatro. Nas bancadas, nem se levantaram durante um concerto que foi soberbo, inesquecível. Altamente profissional, quase irrepreensível, com o Ozzy fresco que nem uma alface, a "correr" e a bater palmas, o Iommi e o Geezer a espalharem classe e Tommy Clufetos (que quando nasceu já eles tinham oito discos editados!) a tratar a bateria por tu, e a fazer um solo fabuloso como que a afirmar-se no meio de três ícones, substituindo na tour o Bill Ward. As duas loiraças que encontraram abrigo junto de nós, os versos cantados a plenos pulmões, as guitarradas a serem simuladas nas nossas mãos vazias, enfim, uma energia quase indescritível. À saída encontrámos o Satan e o Quim, camaradas destas lides que haviam chegado nesse dia e partiriam pela manhã. Demorou até percebermos bem o que tinha acontecido e a sua importância. Voltámos para casa num estado meio catatónico, onde as palavras se atropelavam numa festa psicodélica de euforia e cansaço. Lentamente, lá fomos trocando impressões, enquanto o Daniel nos definia como "lendas vivas".


O dia seguinte significou o adeus. O Marc saiu pela alvorada, eu e o Pedro despedimo-nos do Daniel no comboio. Ele iria ao cemitério antes de seguir para Orly, e nós teríamos ainda algumas horas para visitas finais antes de rumarmos a Charles de Gaulle. A incontornável Torre Eiffel, do alto dos seus 300 metros, e as catacumbas marcaram esse dia. Com muitos km's nas pernas, os ares exaustos estavam bem patentes nos nossos rostos, mas a alegria de ter visto algo tão único ninguém nos poderia tirar. E perto de mil fotografias documentaram isso mesmo. O voo da Easyjet foi calmíssimo e daria para descansar a vista se, justamente na fila da frente, não fosse um Ser irritante. Curiosamente, Black Sabbath foram anunciados para o próximo Hellfest, onde também contamos estar. Se podemos ver estes dinossauros duas vezes, porque haveremos de ver apenas uma? Uma coisa é certa, Paris foi Paris! Para finalizar, um eterno obrigado ao Filipe e à Marie por nos terem acolhido no seu lar e nos darem o pequeno almoço, cobrando apenas o nosso bom comportamento! Meus senhores, que página adicionámos nós ao livro das nossas vidas, que página!



Setlist:

War Pigs
Into the Void
Under the Sun/Every day Comes and Goes
Snowblind
Age of Reason
Black Sabbath
Behind the Wall of Sleep
NIB
End of the Beginning
Fairies Wear Boots
Rat Salad
Iron Man
God is Dead?
Dirty Woman
Children of the Grave
Paranoid


I. "Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida", Sérgio Godinho


Em tempos, este foi um blogue onde deixava as minhas crónicas sobre todos os concertos e mais alguns, além de curtas opiniões sobre discos. Entendo que, por escrever sobre todos os eventos a que ia, poucos estavam a ser sentidos como realmente mereciam. Era uma espécie de piloto automático, chegando aqui e despejando texto só porque sim, em vez de fazer dos dedos marionetas do coração, descrevendo de forma intensa e apaixonada o que um dia levarei comigo para o outro mundo. Por isso perdi o interesse. Deixei de escrever e este cantinho foi esquecido pela crueldade do tempo, o espelho de mim mesmo. Porque sem colocar toda a força da alma ao serviço de algo, dificilmente as pilhas duram. Este espaço servirá, a partir de agora, para ir registando momentos relevantes de uma agridoce existência. Um ou outro vivido no passado, que me vá lembrando, e os que ainda estão guardados pelo misterioso futuro que nos está reservado. Apenas esses. Qualquer evento, qualquer emoção podem ser dignos de serem recordados (não apenas concertos, nem sem critério), desde que se distinga, na companhia de uma ou mais imagens que o ilustrem. No fundo, este abrigo é a resposta à questão: o que gostarias de recordar quando a idade já não lembrar? Porque o caminho, esse, faz-se caminhando e é um baú de memórias que não deve ser desvalorizado. Somos o que vamos apanhando ao longo da caminhada. E, eu, sou isto que escrevo. Com toda a certeza, não sou o mais interessante dos livros, nem sequer das capas, mas sou eu. Sinceramente.

C.